Trauma colonial reencenado na guerra nossa de cada dia
- Jéssica Kellen Rodrigues
- 30 de out.
- 7 min de leitura

Jéssica Kellen Rodrigues
Peço licença e passagem para esse texto visceral, orgânico e que divide um pouco da minha dor. Hoje, 29 de outubro de 2025, acordei e me deparei com as imagens que ilustram este texto (acesso nos links acima). São, até o momento em que escrevo, cerca de 130 “corpos” no chão, cobertos por lona e panos com sangue, segundo a Defensoria Pública do Rio de Janeiro. Uma verdadeira cena de horror, antes relatada com tanta precisão por Eduardo Taddeo no livro A Guerra não declarada na visão de um favelado de 2012, na ocasião nos disse Taddeo:
A matança efetuada nas madrugadas por policiais, inegavelmente exibia um potencial muito superior a auto aniquilação, para atender a demanda da nobreza nacional por cadáveres. Exímios matadores, os racistas fardados não tenham as menores dificuldades em cumprir as tarefas transmitidas por seus amos. (TADDEO, 2012, p.518).
Taddeo chama essa matança de “carnificina legalizada” e burocraticamente garantida em pilhas de papéis com assinatura dos cúmplices engravatados que, de dentro de algum escritório, dão aval para o genocídio mascarado de guerra contra as drogas.
Lamentável, para alguns, um deleite para os defensores do “bandido bom é bandido morto” e claro, um espetáculo político para quem conta com o voto destes defensores. Como também nos diz Taddeo:
E quase certo, que por esbarrar em preceitos morais, a reciclagem e conversão de nossos restos mortais em cinzeiros e pentes de cabelo, nunca ocorra. No entanto, não duvide, que se um dia os ricos brasileiros dominarem a técnica da polimerização (...). Com essa tecnologia sob o domínio do topo da pirâmide, somada ao juízo de valor que os mais privilegiados fazem dos pobres, os exemplares dos grupos mais marginalizados, fatalmente, seriam negociados em lojas de shopping como obras de arte. Não me surpreenderá, se no futuro, os bacanas brindarem os seus êxitos em negociatas, contemplando favelados sem vida decorando suas residências suntuosas. Não me surpreenderá, se no futuro, tomarmos os lugares dos animais empalhados e das cabeças de leões ou tigres, que ficam expostas nas salas de troféus de caça. (TADDEO, 2012, p.344)
A animalização, a desumanização, a objetificação de corpos negros e periféricos são ainda hoje o que sustenta as relações sociais, e a melhor forma de garantir a manutenção do status quo é a demonstração de poder por meio do que Achille Mbembe chamou de Necropolítica (2011) em seu texto de mesmo nome que, de modo resumido, pode ser compreendido como um sistema político em que a maior expressão de poder está em decidir quem vive e morre e que, na guerra nossa de cada dia, se expressa na carnificina que as periferias do Brasil vivem constantemente.
Eduardo Taddeo, faz uma denúncia da política de extermínio dirigida contra a população negra e pobre das periferias brasileiras. O autor problematiza como o Estado perpetua uma guerra silenciosa que reproduz, na contemporaneidade, as mesmas estruturas de desumanização herdadas do período da escravização, isto é, o Estado reproduz a estrutura de poder que, em última instância, faz reencenar as violências que mantém vivo nosso trauma colonial, como apresentado por Grada Kilomba em seu texto Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano (2019). Sobre o trauma colonial, como discuti anteriormente:
O trauma colonial então, pode ser compreendido como ferida violenta na psique que foi memorizada por meio da lembrança de uma história coletiva violenta e que é ensinada através do racismo cotidiano. O racismo cotidiano é a ferramenta da colonização por meio da violência colonial que mantém a memória de um passado violento e a vivência no presente de violências coloniais atualizadas. (RODRIGUES, 2025, p. 321).
E que:
Os casos de racismo cotidiano, ainda presentes em nossa sociedade, reforçam princípios estabelecidos no período da colonização, que continuam sistematicamente violentando as pessoas negras. Além da violência permanecer a mesma, o adoecimento psíquico prevalece entre os grupos minorizados, e o trauma colonial segue sendo característico dos povos marginalizados. (RODRIGUES, 2025, p. 321).
A operação policial do dia 28 de outubro de 2025 no Rio de Janeiro reencena as violências que são as causas do trauma colonial. Faz com que nós, herdeiros da memória das violências coloniais, lembremos da desumanização e da violência que nos espreita constantemente. Essas violências podem ser analisadas em dimensões diferentes que se correlacionam: Vou destacar somente três dimensões, ciente de que elas são somente algumas das muitas questões que envolvem esse processo: a transformação dos corpos marginalizados em alvos descartáveis, a naturalização da morte como prática estatal, aqui alinhada com a noção de necropolítica, e a reatualização simbólica e material do trauma colonial através do tratamento indigno dado às vítimas do massacre.
Sobre os corpos marginalizados como alvos descartáveis: os corpos estirados no asfalto, colocados um ao lado do outro e cobertos com panos e lonas, evidenciam que o Estado e suas forças armadas tratam os grupos sociais marginalizados como população inimiga a ser exterminada como limpeza étnica. Essa necropolítica, que define quem pode viver e quem deve morrer, mantém a estrutura de violência e morte do período da escravização. Isto é, o Estado escolhe, sistematicamente, que os moradores das periferias sejam eliminados em nome da “ordem”, da “segurança” e da “proteção aos cidadãos de bem”. Assim, resumidamente, podemos dizer que a política de segurança, sustentada pela retórica da guerra às drogas, atua como continuidade das práticas coloniais de caça, punição e eliminação de corpos marginalizados, vistos como excedentes da nação.
Embaixo da chuva de tiro, testemunha do genocídio. Aqui é Facção, Direto do Campo de Extermínio. (Facção Central, Música: São Paulo - Aushwitz versão brasileira, 2003).
Sobre a naturalização da morte e o Estado genocida: Taddeo, ao descrever o cotidiano da periferia como um “campo de exterminío” desnuda a cumplicidade das instituições políticas com o genocídio cotidiano e que importa aos políticos quando servem ao seu próposito de poder. O povo periférico convive com a morte frequente, o cenário é de guerra e os que ainda vivem são vistos como sobreviventes (como podemos observar sendo cantado por inúmeros rappers). A mídia não se importa, a população não se choca e mesmo no caso de hoje, aquelas vidas se tornaram números. Há uma naturalização, na medida em que, a comoção geral é momentânea, infelizmente. Afinal, a política de morte no Brasil começou no momento da invasão e genocídio negro e indígena promovidos pelo colonizador.
Com isso, não quero dizer que não houve e que não há resistência, mas, que a atualização constante do dispositivo de poder - como diz Sueli Carneiro (2023) - sustenta em novos contornos o modus operandi da colonização. Assim, o massacre constante não é acidente, mas projeto. Essa normalização da morte opera por meio de um discurso civilizatório que remonta à lógica colonial: o Estado se apresenta como protetor da ordem, enquanto destrói os povos que encarnam a memória viva da colonização. Como na colônia, a violência é justificada pela ideia de que os povos marginalizados são perigosos e, portanto, matáveis. A necropolítica à brasileira é, nesse sentido, a continuidade do pelourinho, agora sob o nome de “política de segurança pública”.
Sobre a reatualização simbólica e material do trauma colonial através do tratamento indigno dado às vítimas do massacre: Talvez o aspecto mais perturbador deste cenário constante que vivemos, seja o modo como Taddeo narra o destino dos mortos: corpos “embaixo de jornais presos ao chão com tijolos”, “pedaços de seres humanos varridos como folhas secas”. Seja pelo uso das imagens para louvor dos carniceiros do sistema que dizem “matou pouco”. Ou ainda, pela dor particular que essas imagens me fazem reviver - meu irmão em 2022 era também um corpo no chão coberto por lona - e que ecoa o meu trauma e do meu povo. Impressionante como, mesmo após a morte, os corpos marginalizados continuam sendo explorados, violentados e transformados em objetos. A falta de dignidade no momento da morte, a falta de respeito com o luto de uma família, o corpo sem vida está jogado no asfalto quente, enchendo de insetos e vigiado por câmeras.
Quando meu irmão faleceu não deixamos minha mãe acessar as redes, jornais locais colocaram fotos e vídeos do meu irmão no asfalto. Não há mais vida é verdade, mas a morte violenta, prematura, o trato desumano de um ente querido e a reprodução da indigência, do escárnio com aqueles que não são vistos como pessoas, violenta intermitentemente a vítima, família, o grupo social que aquela pessoa pertencia. Nesse mesmo caminho é interessante ouvir constantemente famílias enlutadas exigir para seu morto; “é ser humano” aos berros. A indiferença diante da vitima é a face contemporânea do mesmo processo de desumanização que marcou a escravidão quando os corpos negros eram propriedade, matéria-prima e mercadoria, jogados em covas rasas e sem direito a um funeral digno. Talvez um cético ou um pragmático convicto me perguntaria a importância da reivindicação da dignidade para um corpo sem vida. Muitas coisas precisariam ser ditas, por enquanto, o fim do processo ainda é parte dele, eu diria.
Os corpos marginalizados servem de imagens para narrativas opressoras, por um lado, e de revitimização da família enlutada, por outro. São muitos sentimentos envolvidos, desde a vergonha e dor do corpo do familiar exposto a céu aberto, até as condições de possibilidade que levaram aquela cena e que simboliza e revive os traumas. A violência também cumpre seu papel em simbolizar um lugar de poder e o lugar de subjugação, no entanto, aqueles que se veem no lugar dos corpos violentados não conseguem inserir tal violência na rede simbólica e é portanto, traumatizada. O trato inadequado e a profanação dos mortos, portanto, não são apenas descuidos administrativos, mas gestos simbólicos que reiteram a não humanidade histórica atribuída à população marginalizada e ao negar-lhes o luto digno, o Estado reinscreve a ferida colonial e reencena o trauma.
Por fim, deixo um trecho da música “12 de outubro” do Facção Central - grupo de rap que Eduardo Taddeo fez parte - que me parece dialogar com o que proponho aqui:
Hoje é dia das crianças, e daí?
Quem vê sangue não tem motivo pra sorrir
Não existe presentes e alegria
Nem dia das crianças na periferia (Facção Central, Música: 12 de outubro, 1999)
Referências:
CARNEIRO, Sueli. Dispositivo de Racialidade: A Construção do Outro como Não-Ser como fundamento do Ser. 1º ed. Rio de Janeiro: Zahar. 2023
FACÇÃO CENTRAL. 12 de Outubro. In: FACÇÃO CENTRAL. Versos sangrentos. São Paulo: Sky Blue Music, 1999. 1 CD, faixa 3.
FACÇÃO CENTRAL. Aushwitz versão brasileira. In: FACÇÃO CENTRAL Direto do campo de extermínio. São Paulo: Sky Blue Music, 2003. 1 CD, faixa 4.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Tradução de Renata Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018
RODRIGUES, Jéssica. Psicopatologia da dominação: Frantz Fanon e Grada
Kilomba sobre o trauma. In:Dossiê II Congresso Internacional Psicanálise e Filosofia: Psicanálise e os Labirintos da Alma. Revista Natureza Humana. 2025
TADDEO, Carlos Eduardo. A Guerra não Declarada na Visão de um Favelado. 1°ed. 2012


