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Babygirl e o desejo no Capitalismo

  • Graziela Marcheti
  • 15 de jan.
  • 5 min de leitura

Atualizado: 18 de jan.



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Tenho achado muito curiosa a forma como alguns filmes que abordam o desejo feminino estabelecem uma relação com a inserção das mulheres na vida pública, no trabalho ou propriamente no modo de vida capitalista.


Para mim, foi impossível ver Babygirl e não me lembrar de Elle, de Paul Verhoeven, por exemplo - outro filme de que gosto muito. Em ambos os filmes, as mulheres protagonistas, mais velhas, possuem uma relativa posição de poder no mercado, são CEO's de grandes empresas.


Curiosamente, as empresas que dirigem são voltadas à área de tecnologia. Em Elle, a empresa é de jogos de videogame; e em Babygirl, trata-se de uma empresa de robôs. Áreas pouco inseridas no que se reconhece como universo feminino... Não acho isso pouco relevante para a construção de ambas as narrativas e vou me deter mais em como isso não deve ser ignorado em Babygirl.


Ao contrário do que se poderia pensar de imediato, Romy, em Babygirl, carrega consigo muitos símbolos de uma mulher submetida (e não submissa). Quanto mais Romy atinge um lugar de poder social - de mulher bem-sucedida pessoal e profissionalmente -, mais vemos o quanto ela está submetida aos discursos do Capitalismo e do Patriarcado. Excessivamente magra, loira, de avental, boa mãe (presente, servindo o café da manhã), com cores sóbrias, boa esposa (performa bem sexualmente), ereta, reproduz o discurso da empresa, é inteligente, comedida, e na medida certa, segura de si.


Uma vida em que, para se atingir o topo, é necessário mais e mais se submeter...


Eis que Samuel, um estagiário jovem e arguto, aparece para, sobretudo, lhe fazer algumas perguntas. Ele quer que ela seja sua tutora na empresa. E, mais do que mandar em Romy, Samuel a questiona.

Há debates sobre se o que eles estabelecem entre si é de fato uma relação sadomasoquista. E acho interessantíssimo pensar que o acordo "eu mando e você obedece", estabelecido entre eles, acontece de uma maneira bem mais libertadora do que todo alcance social de poder ao longo da vida da protagonista. Samuel é bem mais livre que Romy, tem muito menos a perder que ela. E quando o discurso de que ele possui menos poder na empresa aparece entre eles, como forma de menção ao assédio sexual ali configurado, convenhamos, fica difícil nos solidarizarmos... Para ele, sair de um estágio e mudar pra outro país é perfeitamente aceitável. Para ela, perder o lugar de CEO seria uma tragédia.


Samuel sabe disso e joga constantemente com essas contradições.


À medida que a relação deles se desenvolve, também Romy vai se dando conta do quanto o risco de implodir sua vida profissional e familiar é o que a engaja nesse desejo avassalador.


Samuel a desnuda pela primeira vez quando diz que ela parece "gostar que lhe digam o que fazer". Ela tanto "gosta" que repete as ordens sociais a todo momento. É exemplar. Todos os discursos ideais são reproduzidos em sua existência. A única resistência ali presente e pulsante está no fato de que é incapaz de gozar com essa vida bem sucedida. Mesmo com um marido que a deseja, que é carinhoso, bonito e interessante, Romy não atinge o orgasmo. Há aí um gap, que poderíamos pensar no gap do orgasmo (como bem lembrado pela jornalista Flávia Guerra, na fala de Halina Heijn, diretora do filme). Mas, é possível que pensemos também em outro gap. Não só o gap do desencontro de fantasias entre marido e mulher. Mas o gap da resistência que esse sintoma (ausência de orgasmo) apresenta. Não... Atingir a todas as determinações sociais não nos faz atingir o orgasmo. Talvez porque emergir em um orgasmo tenha muito pouco a ver com idealizações.


Judith Butler, em A Vida Psíquica do Poder, nos guia para as entranhas da constituição do sujeito. E o que vai se desenhando em suas proposições é que, justamente, quanto mais nos constituímos como sujeito, mais nos submetemos às demandas que nos antecedem. Ou seja, quanto maior a autonomia (e portanto poder), maior a submissão. Mais o projeto foi bem realizado, menos se constitui como alteridade. Nesse sentido, a subversão é fundamental. Algo precisa sair do controle, nesse caminho, para que não sejamos mera reprodução, incapazes de friccionar a vida, o corpo e o desejo.


Samuel funciona na narrativa, um pouco, como um intérprete para o desejo de Romy. Não apenas ele a submete. Eu diria, talvez, que nem isso ele faz... Sobretudo, ele a questiona, faz perguntas o tempo todo se é isso que ela quer. Ou seja, ela precisa dizer do seu desejo, consentir explicitamente. E isso é o mais difícil para Romy.


Uma das muitas cenas tocantes do filme é justamente quando Samuel a carrega no colo e diz "você é minha babygirl". Uma mulher madura ali, num universo lúdico, em que pode ser olhada como uma "baby" (não uma moça jovem que ela tenta parecer com aplicações de botox, mas uma bebê, a ser cuidada e amparada). E o que esse desejo de receber ordens pode revelar de nossa ânsia por cuidado, por um olhar que sabe de nós, que sabe do mundo, muito mais do que tudo o que desconhecemos?


Quando é possível dar essa volta no desejo e perceber o que ele vai revelando de nós, no escuro, é que a coisa pode estar mais próxima de uma certa liberdade. O orgasmo que ela descobre na relação com ele é, eu diria, tanto um efeito quanto uma revelação.


E aí entram as limitações de uma narrativa imersa no capitalismo. O que Romy faz com essa revelação? Muitos questionam o fato dela continuar com o marido, como se isso mostrasse uma fraqueza da personagem. Acho que isso ajuda a esfregar na cara do espectador e da espectadora, que nada daquilo tem a ver com o marido a satisfazer ou não. Aliás, muito pouco ali tem a ver com o marido, que não é um idiota, e muito menos um sujeito tóxico. Mas, uma vida de submissão aos ideais sociais de boa mulher, boa mãe e boa profissional, isso sim a esvazia subjetivamente.


Vale lembrar que a personagem de Sophie Wilde, uma mulher negra e assistente direta de Romy, é muito instigante no filme. Ao confrontar claramente Romy diante de suas expectativas para o papel de uma mulher na empresa, podemos ver todos os limites de um feminismo liberal. Afinal, de que nos adiantaria ter mulheres no topo de uma empresa de robótica que reproduz o discurso do capitalismo com o mesmo afinco de outros líderes? Qual seria a diferença nesse discurso? Trazer mais mulheres para esse lugar de liderança pode ser bom para a diminuição da desigualdade de gênero em certas camadas, mas no que teria efeitos na diminuição da profunda exclusão promovida por esse modelo econômico? O discurso de Esme, ao final, não avança diante desses limites.


Por fim, Samuel sai da empresa e do país. E Romy pode afirmar seu desejo diante de um dos poderosos que tenta claramente lhe assediar. “Se eu quiser que alguém mande em mim, eu vou pagar por isso”, ela diz. O sentido de “pagar por isso” aqui pode ir muito além de uma transação financeira. É possível que a personagem tenha atingido algo sobre a sustentação de seu desejo, que nos cobra, na mesma medida em que nos revela partes distintas e tão distantes dos nossos ideais.

 
 
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